quinta-feira, 26 de setembro de 2013

O último Apostolo (mitos Cthulhu)


A agonia fazia com que cada segundo parecesse uma eternidade.

Amarrado numa mesa cirúrgica, ele oscilava entre o alívio da inconsciência e a dor – uma dor insuportável, como se  tivesse mergulhado numa piscina cheia de agulhas.
Flashes de imagens intercalavam-se com a escuridão, revelando detalhes do ambiente : um médico com o avental sujo de sangue … Um cômodo  de pedra… Paredes que se encontravam em ângulos geometricamente impossíveis… Inscrições rúnicas talhadas na rocha…

– Ele vai ficar uma obra-prima, Dr. West. – Disse uma voz rouca, próxima ao seu ouvido. – Vai dar um belo apóstolo. Espalhou o evangelho ainda melhor que o primogênito.
O introvertido Dr. West – um cirurgião jovem, com um olhar obsessivo por trás dos óculos – utilizava instrumentos estranhos: cutelos, serrotes, alicates, facas, grampos e anzóis. Ocasionalmente, o médico pegava vísceras em um balde, e depois enfiava em seu abdome aberto, como se fosse um taxidermista, e ele,  um animal empalhado.
West trabalhava indiferente às suas súplicas.
Com um esforço hercúleo,  olhou de soslaio e conseguiu ver outro interlocutor.
Mas a voz não vinha de uma pessoa.

Vinha de um rato; um roedor com feições impossivelmente  humanas, que sorria e chicoteava a cauda contra  à sua bochecha.
O surrealismo daquilo o teria feito gargalhar se não estivesse gritando. Tudo parecia estranhamente familiar, mas o sofrimento  impedia que conectasse  as evidências.
– Calma, está quase pronto. – o roedor misterioso explicou – Sei que está sofrendo, mas é um mal necessário. O advento está próximo, e logo estará assentado ao lado dele no trono.
Há apenas dois dias, o paciente era um escritor gótico em ascensão. Seus romances de horror haviam conseguido superar a venda de todos os livros sagrados, desde a Bíblia até o Corão.
Imergindo numa crise de culpa católica, pensou que, talvez, Deus estivesse lhe punindo. Aquilo só podia ser o inferno!
Olhou para os próprios pés e descobriu a razão de tanto sofrimento.
O Dr. West havia lhe esfolado vivo!
Seus músculos brilhavam com a tonalidade da carne crua. Nervos e artérias tão visíveis quanto rios num mapa hidrográfico.
O Dr. West aproximou um bisturi de seu rosto e  perfurou-lhe os globos oculares sem qualquer cerimônia.
Naquele instante tudo foi tragado por uma penumbra abissal, e com ela veio uma dor tão intensa, que suas cordas vocais arrebentaram de tanto berrar.

***

Ele abriu as pálpebras e tudo parecia ter adquirido um aspecto novo.
Como se tivesse sido cego a vida inteira, percebeu detalhes minuciosos da realidade; via cada poro da barba do Dr. Herbert West, cada ranhura microscópica nas irregularidades da parede.
Não havia mais agonia, apenas um júbilo paradoxal, além de sua compreensão.
O médico estava com o rato no ombro. Ambos cochichavam e sorriam.  West pegou um enorme espelho de latão e  mostrou-lhe o resultado da cirurgia.
Ainda havia algo vagamente familiar no reflexo que encarava. Traços diluídos de suas antigas feições permaneciam ali, entretanto, aquilo definitivamente não era mais ele. A pele escamosa, costurada ao tecido muscular, reluzia sob a luz das tochas. Os novos olhos implantados tinham a tonalidade de pérolas, tão negras e abobadadas quanto os de um sapo. Guelras pulsavam atrás das fendas que outrora foram suas orelhas.
– Venha conosco. – West convidou.
Ele levantou da mesa cirúrgica e seguiu o médico, sem compreender a aceitação daquela nova identidade. Uma euforia pentecostal queimava em seu peito, quando adentraram um coliseu a céu aberto.
As nuvens faiscavam, carregadas de eletricidade. As ondas do mar se chocavam contra as rochas lá embaixo. Aquele estranho teatro em ruínas, localizava-se no topo de uma cidadela ancestral, no meio do oceano pacífico. Torres ciclópicas com ângulos e formas que contrariavam qualquer padrão arquitetônico, empalavam o firmamento em desafio ao obsoleto Criador.
Como se fosse ele alguma autoridade clerical, uma multidão nas arquibancadas o reverenciou. Parecia um canto gregoriano herético; vozes incompreensíveis, que blasfemavam uma liturgia proibida às limitações anatômicas do lábio humano. Levou um tempo para notar que os devotos não eram pessoas, mas aberrações de biologia absolutamente alienígena.  Algumas entraram em êxtase e reviraram órgãos sensoriais que certamente não pareciam em nada com olhos.
Eclipsando o horizonte, acorrentada num pináculo colossal, uma criatura monolítica com asas draconianas, e cabeça octópode debatia-se, prestes a quebrar seus grilhões, e lançar seu potentado de horror pela terra.
No centro da arena, ao redor de uma mesa de pedra, ele foi recebido calorosamente pelos outros onze escolhidos. Todos ainda reconhecíveis e tão bestiais quanto ele, mas inteiramente diferentes em suas anatomias e particularidades. Mesmo sob novas camadas de pele e tentáculos, identificou três evangelistas: Stephen King, August Derleth e Clark Ashton Smith.
Emocionado, juntou-se aos apóstolos, enquanto H.P Lovecraft iniciava a última ceia do mundo, compartilhando a própria carne e o sangue.

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