quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Maldito Perdedor

Em tempo de paz convém ao homem serenidade e humildade; mas quando estoura a guerra deve agir como um tigre!
                                                                   William Shakespeare
 
(…)
Pablo fazia o mesmo trajeto para casa todas as tardes.
Saia do trabalho as dezoito horas e levava cerca de vinte e cinco minutos caminhando para chegar em sua residencia.
Certo dia saiu mais cedo e resolveu que antes de realizar o caminho de sempre, iria passar em uma loja do centro para comprar um presente para sua esposa. O casal estava prestes a fazer dois anos de casado e Pablo como um bom amante queria presentear o grande amor de sua vida.
Comprou um belo colar em uma famosa joalheria que ele conhecia, não muito distante do escritório onde atuava como contador. Na volta para casa, pegou uma rota alternativa.
Seguiu pela movimentada Avenida 19, uma das mais tradicionais ruas de Santa Clara.
Caminhava pensando em qual seria a reação da esposa quando ele lhe entregasse o presente. Seria demais, sim, seria. Ana era uma ótima mulher e Pablo um homem feliz por estar ao seu lado.
Seu devaneio foi interrompido, quando um jovem carregando um grande móvel apareceu de repente em sua frente.
- Me desculpe amigo, é que estamos fazendo uma limpeza aqui e essa mesa obstruiu minha visão. Falou o rapaz sorrindo enquanto jogava a antiga peça dentro de uma caçamba de entulho.
- Sem problemas. Respondeu Pablo.
O jovem voltou para dentro da casa que havia saído e Pablo ficou ali, próximo ao portão, encarando a residência, uma velha mansão.
O lugar parecia a tempos desabitado.
Pablo depois olhou para a caçamba de lixo, logo ao seu lado, beirando o meio-fio. Aquilo de alguma forma lhe chamou a atenção.
O contador nunca se imaginou no centro da cidade mexendo no lixo dos outros. Mas aquele conjunto de entulho lhe causou um pressentimento de que algo bom havia ali.
Como se estivesse hipnotizado Pablo foi até a caçamba e não se importou em verificar o que tanto os antigos moradores do casarão estavam jogando fora.
Viu dentro do compartimento muitas coisas que se podiam aproveitar: Porta retratos, quadros, candelabros e até mesmo a pequena mesa.
A velha mansão parecia estar sendo esvaziada.
O item que mais atraiu Pablo lembrava uma maleta e era feito de madeira. O homem o pegou nas mãos e observou belos desenhos talhados de um forma espetacular.
Uma batalha medieval, cavaleiros, soldados e no céu um estranho rosto lhes encarando com uma expressão de decepção. Eram esse os desenhos naquele abandonado artefato.
Estudou melhor o objeto e viu duas travas paralelas de um dos lados. As abriu, dentro estavam várias peças. Era um luxuoso tabuleiro de xadrez.
“Como são bonitas suas peças, até parecem ouro.” Pensou Pablo enquanto acariciava um Peão.
Ficou feliz com o que havia achado, um verdadeiro tesouro.
Fechou o tabuleiro e o colocou embaixo do braço. Rapidamente tomou o caminho para casa,  sorriu quando olhou para trás e viu que ninguém havia reparado em sua atitude.
Quando chegou escondeu o presente de sua amada, o aniversário era no dia seguinte, não havia por que adiantar as coisas.
Conversou com Ana e lhe contou sobre o achado.
- No lixo? Credo Pablo, ficar fuçando em lixeiras, não sei por que foi trazer pra casa uma velharia dessas… Eu nem sabia que você jogava xadrez!
A mulher não era fã de coisas antigas.
- Já joguei meu amorzinho, há muito tempo! Na escola eu era craque nisso! Pablo sorria, parecia uma criança.
- Duvido! Mas vai lá, deixa isso de lado, depois você brinca… O jantar já está na mesa.
(…)

Depois do jantar o homem tomou um banho, saiu do chuveiro e viu que sua mulher falava com uma de suas amigas no telefone.
Eram mais de dez horas da noite e mesmo com Pablo sempre indo dormir cedo, para no outro dia aguentar acordar as 8:00, resolveu que naquela noite iria para a cama um pouco mais tarde.
Antes disso precisava se deliciar pelo menos por alguns minutos com seu mais novo brinquedo.
Mandou um beijo para a mulher, pegou o tabuleiro e foi até a sala.
Lá sentou-se em sua poltrona e colocou o jogo na mesa-de-centro que ficava logo a sua frente.
Abriu a maleta e contou as peças.
- Trinta e duas! O jogo está completo! Exclamou o homem para si. Era possível ver a felicidade em seus olhos.
Pablo sabia que Ana não jogaria com ele, mas mesmo assim começou a arrumar as peças. Uma por uma, ele colocou todas em seus lugares e quando terminou olhou satisfeito para o tabuleiro. A primeira etapa fora realizada com sucesso.
Foi ai que algo sobrenatural aconteceu…

Um peão que estava do lado oposto de Pablo se mexeu. Mas o mais sinistro, foi a voz que ecoou dentro da cabeça do inocente homem.
- Sua vez meu caro amigo.
Pablo não se assustou como qualquer outra pessoa normal e sim entrou em uma espécie de transe.
Então jogou. Mexeu um dos peões que estava de seu lado e na sequencia uma das peças do lado oposto deu continuidade na jogada.
Dessa forma o jogo maldito seguiu.
Pablo mordeu a fruta do pecado, a isca do medonho e nem notou.
Entrou em uma batalha sem saber de seus objetivos. Um soldado cego.
(…)
Minutos depois Ana levantou beber um copo de aguá e ao passar pela sala se surpreendeu ao ver a expressão de concentração do marido. Ele estava jogando sozinho, mexia uma peça branca e perecia que esperava algo e logo depois jogava com uma peça preta, como se simulasse um segundo jogador.
Sorrindo a mulher comentou:
- O que o tédio não faz hein Pablo! O que acha de ir deitar, estou te esperando lá na cama.
Mas Pablo nem ouviu, continuou seu jogo.
A voz na cabeça do homem não cessava.
- Parabéns meu jovem você joga muito bem para um amador!
- Xeque-mate! Gritou Pablo.
- Muito bem, 1 a 0, vamos jogar outra… Na próxima você não terá chances, pois agora já conheço seu estilo. Disse a misteriosa voz que lembrava um pouco o timbre do próprio Pablo, mas o homem sabia que aquilo não era ele e sim o tabuleiro.
De alguma forma o objeto possuía vida.
Pablo arrumou o tabuleiro novamente e começou a segunda partida. Mas a alegria da primeira vitória se transformou em raiva, pois em poucas jogadas ele foi derrotado.
- Não disse! A segunda foi fácil, já sei como você joga meu caro, agora você está em minhas mãos!
A voz estava mais forte. Ao ouvir as palavras Pablo sentiu seu cérebro tremer, foi como se levasse uma pancada na cabeça.
Com raiva respondeu:
- Está empatado! Irei arrumar as peças de novo e vou te mostrar que você teve sorte!
(…)

Ao ouvir o marido falando sozinho, Ana cansou daquela loucura e decidiu que se em dez minutos ele não fosse para a cama ela iria por um fim naquele jogo ridículo.
Passaram sete minutos e ela ouviu Pablo e seu monologo novamente. Dessa vez o homem estava mais irritado.
- Não é justo! Você esta roubando porra! Mas o jogo ainda não acabou seu filho da mãe! A vitoria vai ser minha! Você ta fodido seu desgraçado!
Preocupada a mulher levantou para dar um basta naquela brincadeira sem graça.
- Pablo já é tarde vamos dormir, para com essa bobagem ai, não aguento ver você jogando sozinho essa merda!
Mas ele nem ouviu, pois estava longe… Em uma luta, onde era tudo ou nada.
O jogo estava empatado e a terceira batalha iria decidir quem iria vencer a guerra. Pablo perdia e não entendia como isso acontecia. Seu  adversário conhecia cada movimento seu.
- É meu caro amigo, estou vendo que esta batalha será minha! Você já não tem suas torres, seus cavalos e agora, perde um bispo!
- Maldito! Como você fez isso?  Não importa, eu irei ganhar você vai ver! Pablo respondeu como se discutisse com alguém e deu um soco forte na mesa de centro, fazendo o tabuleiro tremer.
Ao escutar o marido se alterando daquela forma, Ana levou a mão até a mesa e empurrou o jogo, estragando tudo, acabando com toda a guerra, aniquilando todos os soldados.
Na cabeça de Pablo, a voz mudou de tom pela primeira vez. Sua maneira de falar que soava simpática e amigável parecia nunca ter existido. Com a força de um trovão a voz disse:
- Não! Olha só que essa vadia fez! O jogo era meu, eu estava ganhando! Puta desgraçada! E a culpa é sua por estar com ela! Portanto a vitória foi minha meu caro Pablo, só minha! 2 a 1!
Então veio o riso de deboche e a cabeça de Pablo explodiu.
O homem não aguentou os xingamentos, as provocações e carregado de ódio e vergonha, se levantou.
Como um louco partiu para cima da esposa e com uma força incontrolável agarrou o pescoço de Ana.
Usou todas as suas forças para sufoca-la.
- Você não devia ter feito isso sua puta! Eu ia vencer! Eu ia vencer! O jogo era meu!
(…)

A visão de Ana foi escurecendo e ela não conseguiu pronunciar nenhuma palavra. Nenhum som saiu de sua boa e então tudo escureceu. O coração parou, a vida se esvaziou de seu corpo.
Pablo atirou o corpo morto da mulher no chão como se fosse um lixo.
Respirou fundo e se agachou no chão. Passou a juntar as peças que estavam espalhadas pela sala e assim arrumou tudo para um jogo novo.
Sentou-se em sua poltrona, já estava mais calmo. Limpou o suor de sua testa e mexeu um de seus peões.
- Agora vamos jogar sério seu filho da puta! Disse o recém-assassino encarando o outro lado do tabuleiro, onde não havia ninguém.
O silêncio dominou o campo de batalha. O sorriso de Pablo foi se desconstruindo aos poucos e depois de cinco minutos esperando, o nervosismo começou a tomar conta de seu corpo.
Seu coração disparou, a realidade estava em choque.
Encarou o corpo de Ana no chão e tentou entender tudo o que havia acontecido, mas nada fazia sentido, aquilo tudo não era possível.
Não demorou para que as lagrimas escorressem por sua face. Agora ele era mais um soldado de merda. A batalha já havia acabado e como todas as outras, deixado suas marcas.
Pablo era um perdedor, havia lutado e matado em vão.
FIM

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